25 de maio de 2014

Por que me exonerei de meu cargo efetivo de Professor da Educação Básica II do Estado de São Paulo depois de somente 3 semanas

Por Felipe Queiroz

Graduei-me em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), cerca de 700km longe de minha casa. Não posso mentir dizendo que passei dificuldades financeiras para tal até porque, apesar de não haver luxo, nunca me faltou nada: alimento, xerox, material, livros, e até mesmo lazer. Mas não podemos negar que foi um investimento pessoal.
No sétimo semestre do curso decidi que queria ser professor. Também não posso mentir dizendo que não sabia onde estava pisando, pois sabia que é uma profissão desprestigiada financeiramente, e em alguns casos até mesmo moralmente. Mas segui e sigo com este desejo.
Após me licenciar, fiquei por anos sem exercer a docência: passei pelo administrativo de uma escola particular, pelo trabalho temporário do IBGE, por bico como instrutor do idioma esperanto, até chegar a servidor técnico-administrativo de nível médio da rede federal de ensino, na qual fiquei por 03 anos. Quando servidor federal, pude fazer duas pós-graduações em nível de especialização além de um curso de aperfeiçoamento, e hoje sou segundanista do curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Sou um "buscante" do conhecimento, mas nada me valia não aplicá-los um pouco que fosse, pois vivia encarcerado numa burocracia administrativa que particularmente me desumanizava. Também, portanto, não venha com a máxima embolorada do "quem sabe, faz; quem não sabe, ensina". Porque, modéstia a parte, sei alguma coisa!
Esclareço dizendo que não foi o concurso do Estado de São Paulo (no qual passei em 7º lugar, enferrujadíssimo, diante de uma amplíssima concorrência) o definidor para me exonerar de meu emprego federal, mas sim um outro concurso em uma prefeitura de minha região (no qual fiquei em 1º lugar), que paga muito "menos pior". Comparem:
Prefeitura - R$1590,00 por 10 aulas de efetivo exercício em classe;
Estado - R$677,00 por 09 aulas de efetivo exercício em classe.
Sim, no estado mais rico do Brasil e o mais caro para se viver! Contudo, como fui bem sucedido nos dois concursos e o acúmulo dos dois é legal, resolvi abraçar o estado e pegar uma escola estadual para a qual pudesse me locomover a pé, me garantindo qualidade de vida. E é aí que minha desilusão começou, a partir dos exames admissionais: são tantos exames, e praticamente impossível fazê-los todos pelo SUS e/ou convênio (isso quando o pobre do professor tem um), que o gasto chega a ser exorbitante, e eu particularmente senti-me um candidato à NASA! Já depois de começar a exercer a docência, torna-se impossível estar nas duas redes e não fazer comparações de todos os tipos (e olha que a prefeitura está longe de ser perfeita), estas não só salariais mas de estrutura, de ambiente, e de condições de trabalho em geral. Pensei "tudo bem, vou fazer pelos estudantes", mas as próprias condições objetivas tornam tudo impossível para qualquer trabalho satisfatório, o que me fez ficar frustrado e sentir-me impotente diante da barbárie:
- Há uma verdadeira sopa de letrinhas que dividem e até mesmo rivalizam os professores da rede estadual paulista. A regra do Governo é "dividir para reinar". E me assustei com a falta de consciência de classe e até mesmo de união entre muitos professores. Mas também, professores eventuais, categorias O, categorias F e efetivos dividem a mesma sala dos professores, atuam na mesma situação bárbara, e recebem tratamento diferenciado. E sim, apesar de eu ter sido efetivo, toda essa precarização me atingia, e como sociedade ainda me atinge;
- Não há livros para todos os estudantes ou, quando há, a distribuição é falha. Cabe aqui a hashtag #comofaz;
- A aprovação automática (que é bem diferente do conceito de progressão continuada) é um verdadeiro crime não só por ridicularizar o trabalho do professor, mas também por boicotar o processo de ensino-aprendizagem dos próprios alunos;
- Na escola onde eu estava lotado, por exemplo, não há sequer um mapa mundi. O giz nem sempre se faz escrever sobre a lousa. A apostila é péssima, o livro um pouco melhor. Como ensinar Geografia assim, com a concorrência dos diversos eletrônicos que os estudantes consomem e tentam utilizar escondidos de nós professores? Eu finjo que ensino, eles fingem que aprendem? Não precisam responder esta! Vejam, não quero alunos com tablets e toda uma parafernalha (aliás, soy contra!), mas que exista pelo menos o mínimo;
- As perspectivas de carreira são horríveis, em todos os sentidos. Os incentivos para pós stricto sensu são, na maioria das vezes, para quem dá aula exclusivamente no estado: alguém consegue viver bem assim? Quase todos os abordados por mim diziam que estavam lá para terem "mais uma aposentadoria", mas mesmo assim questionavam-se se estava valendo a pena. Outros eram professores novos, como eu, que estavam lá por se tratar da primeira oportunidade;
- A carga horária das disciplinas não possui qualquer lógica, e no Ensino Médio as ciências humanas pagam o pato de terem bem menos aulas que o necessário. Alguém me ensina como fazer um trabalho satisfatório – nas condições acima, para piorar – dando só uma aulinha semanal para um terceiro ano do Ensino Médio, cuja maioria está ávida para entrar numa universidade?;
- Antes de assumir o cargo, passei na escola para mostrar meu horário da outra rede, para fins de acúmulo legal, para que já pudessem arrumar (já no início do ano) meu horário para segundas e sextas-feiras. Conseguiram distribuir, apesar disso, 9 aulinhas em 4 dias da semana em horários bem diferentes, chocando não só aulas das duas redes, mas também aulas na própria escola (!!!). Mais uma vez prejudicado pelo sistema;
- Ficamos reféns dos estudantes e não há qualquer suporte. Estaria mentindo se disser que cheguei a ser refém de violência, mas sim, afrontas são frequentes e não existe nem a opção de deixar quem não está a fim de assistir aula para fora e dar aulas para quem está interessado. Somos obrigados a reter todos em sala de aula como se fosse creche, e contraditoriamente não há como reprovar. O negócio é empurrar com a barriga. Mas ai se não cumprir com todas as tarefas burocráticas... Aluno fugiu correndo da sala de aula? Culpa do professor! Lá vem o inspetor capitão do mato... Não, ambiente nada saudável para se trabalhar;
- Falando em burocracia, hora de entregar as notas. "Mas eu acabei de chegar, não pude aplicar nada, e ninguém antes de mim aplicou nada também!". "Ah, faça qualquer coisa, peça um trabalhinho". "Mas houve feriado neste mês, meu horário está desorganizado, dou poucas aulas, e não sei o nome de ninguém." "Ah, mas tem que entregar as notas, professor!" "Mas que notas?! Avaliar como, que aprendizado, se comecei agora e nada do programa foi ensinado?" "Ah professor, são os prazos." "Ah, deixa pra lá..." Essa é a droga da educação estadual em uma escola considerada "filé", "modelo", etc., mesmo havendo todos os tipos de dificuldades (até mesmo para ENTRAR na escola, dada a falta de funcionários em suficiência), e... bombas;
- Dar aula no período noturno, em muitos locais, é uma aventura. Diversos perigos no trajeto casa-escola, escola-casa, ou – para muitos – uma escola para outra. Tive o desprazer de ter a única aula do período noturno (antes sendo a primeira de segunda-feira, próxima à última vespertina, a qual também ministrava) isolada para a última de quarta-feira "porque não tinha como deixar como estava" (sendo que era a única aula que não dava problemas pra mim, seria um castigo disfarçado?), quando faço outro curso superior e já havia trancado uma disciplina da universidade na segunda-feira. Imaginem que delícia ter de perder mais a disciplina da universidade de quarta (o dia inteiro) só para me deslocar à escola e dar uma única aulinha... Imaginem como estava 'feliz'. Mas não posso reclamar, né? Afinal "não é acúmulo legal, você não trabalha em outro órgão público durante o período noturno"... "Muitos professores que dão aula em Bertioga gostariam de estar aqui no seu lugar..." Ah tá, legal, mas minha própria condição de universitário me possibilita bolsas com melhor relação custo x benefício, bem menos dor de cabeça, e ainda ganho linha no tal currículo Lattes.
Assim meu ideal de promover educação para os filhos da classe trabalhadora foi para o saco no caso da rede estadual paulista. Não estou para brincar ou para fingir. Não sou professor "tia maricota" ou "leitor de apostila". Prefiro ficar na rede municipal na qual estou, quem sabe complementar a carga para ganhar mais e ter menos dor de cabeça. Ou então pensar em algum tipo de bolsa na UNIFESP, já que também sou estudante de graduação lá. Ou quem sabe algumas aulas em algum cursinho popular ou até mesmo escola particular caso fique necessitado de dinheiro... Só sei que o estado de São Paulo só vale a pena no caso de ser a última opção para quem está com a corda no pescoço, por isso o entra e sai de professores é tão grande, até por parte dos efetivos concursados como foi meu caso, várias matérias jornalísticas mostram isto. Simplesmente não vale a pena, e sei que não fui o único. Desejo sorte e dou toda a solidariedade aos camaradas que ficam lutando na trincheira, tirando leite de pedra, alguns em escolas melhores que a minha, outros em bem piores... Mas todos sofrendo com o salário achatado, os horários esdrúxulos, a desvalorização, o assédio moral como regra, os acertos desfeitos, o conflito professor x aluno que a cada dia se acirra mais, dado os estudantes que são educados exclusivamente pela TV, a parte imbecil da internet, e o Whatsapp.
Deste "maior concurso do magistério do estado de São Paulo" já foram chamados alguns professores, e está sendo chamada a segunda leva. Alguns, como eu, já se exoneraram. Outros, vão aguentar por não terem outra opção. E o exército de professores eventuais, contratados em caráter precário, e contratados estáveis, continuará existindo de maneira massiva mesmo depois de rodar toda a lista do concurso, para o mal da educação pública. E para o bem estrito do demotucanato paulista (a quem não interessa educar ninguém de fato, nem mesmo de maneira utilitária, menos ainda emancipatória), de alguns burocratas asseclas, da Veja (que fala que professor é vagabundo, doutrinador, e se a educação vai mal a culpa é dele), e de certo rol de "pedabobas" que nunca pegaram um giz na mão mas têm ataques de diarreia pedagógica por meio do mundo mágico de teóricos dos quais nunca leram um livro inteiro. Para mim, deu. Toda a solidariedade a quem me substituir, mas estou fora... Tenho outras cartas na manga, e nunca fiz qualquer concurso público só pelo "sonho da estabilidade".
Enquanto isto, quem não pode, vai aguentando as bombas, os desacatos, as imoralidades, o sindicato pelego, o esforço indo em vão, os estudantes colocando-os contra a parede e, estes docentes, sendo genis de vários tipos de gente e da cara de pau do governador e seus parceiros no horário eleitoral falando de números esdrúxulos... E aí, por fim, a equipe da direção tentando apagar vários incêndios ao mesmo tempo... GREVE? A própria APEOESP (sindicato) barra após acordo de cúpula, junto com colegas pelegos, e até mesmo a própria Polícia Militar.
Vou me embora, assim sendo, e não é para Pasárgada não. Em três semanas desenvolvi sintomas que só fui conhecer depois de mais de três anos de serviço federal! Enquanto uma revolução não acontece, sigo com meu esboço de projeto de vida. Estado de São Paulo, volto só se mudar MUITO a conjuntura. O que parece ser impossível, face o reacionarismo padrão dos paulistas (OBS.: antes de me xingar, sou paulista também!). Então sigo do meu jeito... Infelizmente para mim, infelizmente para os alunos com brilho nos olhos, infelizmente para a educação como um todo.



11 comentários:

Gactf disse...

Boa noite professor, o senhor é da esquerda petista? Abraços!

Mauro Bartolomeu disse...

Caro Gactf, a pergunta é dirigida ao administrador do blog ou ao autor do artigo? Só posso responder por mim, mas de qqr forma não vejo a relevância da pergunta.

Gactf disse...

Me perdoe, pensei que o autor do artigo era o proprietário. Desculpe o engano 8) .

Gactf disse...

E sobre a relevância da pergunta, acredito que ele perdurou a crítica no estado de s.paulo de forma massante,sendo que o problema é nacional. Me parece, buscando mostrar que o interior é mais interessante de dar aula. Não sei se simbolizando algum município fora de s.paulo que não seja administrado pela gestão tucana. Também fiquei curioso em saber que estado pertence o município, pois o salário é muito atraente. Obrigado!

Mauro Bartolomeu disse...

Caro Gactf, pra mim ficou bem claro q se trata de um município do estado de São Paulo, já q o professor afirma ter acumulado os dois cargos, na rede estadual e na municipal. Não sei qto ao estado como um todo, mas em todo lugar q eu conheço, pelo menos, a prefeitura paga bem melhor q o estado.
Não conheço de perto a realidade dos outros estados para comparar, mas não tenho dúvida de q a gestão tucana é um desastre para a educação. E não, não sou petista.

Anônimo disse...

É mais ou mais isto mesmo.

Anônimo disse...

A educação tucana??? A ausência de administração não pode ser considerada administração! Será que os tucanos inventaram a desadmistração?

Anônimo disse...

Olá Mauro,
Passei neste concurso e gostaria de saber se hoje vale a pena ser professor do estado de SP. Trabalho em uma empresa privada fora da minha área de formação (Biologia)e muitos me dizem que vale a pena ingressar no estado apesar do salário bem menor mas lendo o seu post e o do Felipe Queiroz sobre os inúmeros obstáculos não consigo enxergar onde? Agradeceria bastante se você ou outros professores pudessem me responder. Será que é um preço alto demais sair para trabalhar na sua área com essas condições??? Obrigada

Mauro Bartolomeu disse...

Cara Anônima, isso não dá pra responder assim de forma simples. Ouço dizer q há, sim, boas escolas na rede pública, mas nunca conheci nenhuma de perto, e vc não vai ingressar diretamente em uma delas, terá de aguentar durante um bom tempo em alguma unidade "menos votada" (em oito anos, eu nunca consegui remoção).
Não sei o qto vc se sente frustrada no seu atual emprego, nem o qto pode vir a gostar do magistério (e, sim, conheço pessoas q conseguem driblar mto bem os desafios da profissão, uma pena é serem uma ridícula minoria). Só o q eu posso te dizer é q o salário é o item q menos peso tem dentre as péssimas condições de trabalho.
Se vc julga q tem a paciência necessária para suportar as humilhações diárias a q estará exposta, te desejo boa sorte. E não vá pensando q a sua formação acadêmica será mto útil tb não, viu...

Anônimo disse...

A nossa cara Profa. só posso reforçar o que o Prof. Mauro escreveu e acrescentar algo mais: vai depender de quanto vc pode suportar de estresse. Se possuir uma personalidade que não seja ansiosa e "sangue frio", suas chances serão maiores de aguentar as condições de trabalho que não são nada fáceis.Abs e pense com calma e cabeça fria.

Anônimo disse...

Entendo perfeitamente o relato deste professor. Sou professora de artes na rede municipal de São Paulo e posso dizer, que a única diferença é o salário. (depois da greve o salário inicial está em torno de R$1900 + beneficios). De resto é tudo muito parecido; falta de funcionários, alunos extremamente violentos e conectados em seus celulares...Mas ao meu ver o pior de tudo é a falta de estrutura e pesquisa. Não temos biblioteca, porque sala de leitura trancada a chaves não é biblioteca, não temos laboratórios de ciencias nem de artes, aliás o Brasil não dá a menor importância para arte...Como posso trabalhar artes com apenas giz e lousa (parede pintada de verde) que mal consigo escrever? o material de péssima qualidade é dado somente para o aluno que não leva nem lápis para a aula. O que eu faço mágica? Por sorte, trabalhei como auxiliar no Colégio Visconde de Porto Seguro e me sobrou muita "sobra" de tinta, papel e lápis de cor dos alunos que pagam R$2,500 para estudar lá. O que posso concluir com todo esse descaso? Que a violencia vai continuar, e vai aumentar cada vez mais. Não é policia que resolve. É um mínimo de educação, e antes ainda PLANEJAMENTO FAMILIAR. Álias, alguem já ouviu falar disso no Brasil? rs...só por deus...